terça-feira, 19 de maio de 2009

Deixai falar as telefonistas


Todos conhecemos este fenômeno da língua que transforma em vilãs do bem dizer as telefonistas: o gerundismo e o "vou estar fazendo". é feio, é ruim de ouvir, não corresponde ao uso erudito da lingua portuguesa... mas não é caso de irmos à fogueira com as profissionais do atendimento por telefone. Vamos ao gramático. Não sou linguista, nem normativista. No devido momento, guardo os plurais e os gêneros, os pronomes de tratamento, enfim, sou um falante instruído e procuro valorizar o uso adequado do nosso idioma querido sempre que posso. é por isso que minha tentativa de ajudar a compreender a adoção do gerundismo pelas telefonistas se baseia em poucos e singelos argumentos. O primeiro é de que sim, o gerúndio existe em nossa língua, e sim, existe na forma flexionada. Vou escrever demonstrando isso. Viram? infinitivo mais gerúndio. escrev[er] demonstra[ndo]. O jogador do Bahia jogou mancando todo o segundo tempo. indicativo mais gerúndio. Faça sorrindo. Claro, nesses exemplos o gerúndio ajuda um verbo a modificar outro, funcionando como adverbio. jogou como? jogou mancando. fez como? sorrindo. Ao caso. Estar passando. Como eu poderia utilizar essas duas coisas de naturezas distintas assim, lado a lado? estar-passar? Nesse instante, gostava de estar passando sob a ponte Vasco da Gama, ouvindo cantar o fado em Alfama. Não me telefone na semana que vem, estarei viajando. Não posso falar, estou dirigindo. Estou vendo. Vejo. Sim, é possível reduzir quase tudo a uma forma verbal mono-palavra. Não posso falar, dirijo. Não me telefone, viajarei. Não fica tão bem com o "na semana que vem". Acho que fica estranho fugir ao gerúndio quando o que se quer é determinar algo em um espaço de tempo. Do dia dois ao dia dez, estarei [vou estar] viajando. Depois, retomamos as aulas. Enfim, o gerúndio existe e pode ser concertado em alguns contextos. Concerto, com c de conjunto. Esse foi o argumento um. O argumento dois: as telefonistas existem, como existem os advogados. O advogado, a pedido nosso, entra com um processo, processa alguém. Na verdade, ele entra com papéis num prédio onde, apresentados esses a um escrivão ou equivalente, formam um processo. Ele, então, sai com o processo. Peticionam, representam. Assim como existem os médicos que punçam e suturam, auscultam e prescrevem. Advogados, médicos, técnicos de informática, sociólogos e filósofos são agentes sociais qualificados, com conhecimentos especiais divididos entre diferentes problemas que podem acometer a sociedade. Isso porque têm junto à sociedade uma autoridade reconhecida. Não se discute com o técnico: formata-se o disco que afinal não é disco, que fosse, ainda assim seriam formatados os dados, não o disco. Mas não se discute. O médico poderia escutar os batimentos, conta-los, marca-los. Mas auscultam o paciente, ali, coitado, impacientissimo. Acontece que a sociedade os respeita, mas não podem suportar as suas secretarias que estarão marcando suas consultas ali a um segundo. Não importa que a falta de provas possa estar dificultando o convencimento do júri quanto à veracidade do álibi, a atendente não pode estar passando. Ela não pode reinventar a língua, quem é ela? é preciso erradicar isto. Erradiquemos o imbu, o resisto, o ejécicio, a direitoria, o dezanove. Vamos permanecer guardando a nossa língua evitando os estrangeirismos que querem defenestra-la do mais alto arranha-céu. Façamos, façamos, mas deixemos por ultimo as telefonistas, deixai falar as telefonistas até que tudo o mais esteja resolvido, porque as telefonistas, coitadas, não podem nem mijar como toda a gente, não podem gripar como toda a gente, não podem desistir como toda a gente. As telefonistas estão sendo forçadas a erro. Este foi o segundo argumento: o de que as telefonistas fazem com a língua o que fazemos os administradores, fazem os advogados e os bombeiros: Falam como podem e escutam. Escrevi esse post - tadam! - com meu teclado azerty que revoluciona sozinho todos os acentos e sinais gráficos. Se corrigisse tudinho ficaria bom, mais com os erros é melhor para que os corações apressados digam que Não sabe escrever, como quer defender as telefonistas. Escrevi pensando em André, que esta sendo doutrinado para um concurso publico, em Biagio, que me mandou faz tempo um e-mail defendendo o bom combate do gerundismo, em meus colegas que estão estudando Língua Portuguesa e Poder no IHAC e se veem obrigados a formar trincheiras. Escrevi para salvar o imbu, mbu, bu, um real o saco. Escrevi sabendo que meu ouvido trinca ao telefone com o sotaque da telefonista, mas muito mais porque ela não me deixa falar, não pode me deixar falar e nem fugir às falas do seu roteiro. Escrevi pensando que a língua é uma dimensão social e por isso não se pode ser nazilinguista. Os pobres, os técnicos, os que jamais serão empregados, todos temos a aptidão inata da fala. E erramos porque falamos, Antonieta, não têm pão as gentes. Escrevi para me solidarizar com eles, André, Biagio, meus colegas, querendo que mude o mundo e que defendam a nossa flor do Lacio, mas lembrando que ela é inculta e bela, inculta e bela, inculta e bela. A língua somos nos, mudemos o modelo e o reflexo mudará.





mapinha so para ficar refletindo