quinta-feira, 22 de maio de 2014

A composição que Caetano me roubou*



 - Roubou. Roubou, roubou, roubou. Michele não me disse naquele momento, mas ela pensou que eu falava de um robô. Só quando viu a televisão que eu estava a ponto de destruir a golpes de controle remoto, percebeu que as acusações repentinas estavam dirigidas a um senhor grisalho, magro, de óculos, respeitável pela figura senão pelo ritmado rebolado e o umbigo ensaiando aparecer sob o agasalho quando o cantor erguia os braços e tremelicava os beiços. O ladrão, o meliante, o réu sumariamente acusado era Caetano Veloso.
– Ele roubou. Eu não me lembrava mas agora eu lembrei. Nunca que ele escreveria isso, olhe a cara dele! Agora que eu me lembrei! Eu que mostrei isso pra ele em 68, eu! Ele estava lá, todo jururu mocozado, os cabelos parecendo um pesqueiro de carapicú, eu fui lá e mostrei pra ele. Ele tava todo Triste Bahia, eu fui lá, agora olhe bem a cara dessa múmia!
 – Ótimo, muito bom, Michele me disse incrédula. Só que o senhor doutor nasceu em 68 foi? Ou foi antes?
– 84, eu nasci em 84, mas 68 foi no Amazonas, eu tive vida antes de lhe conhecer e a senhora sabe. Ligue aí agora é para o seu advogado, ao invés de ficar aí advogado de santamarense. Assim você vai é longe. E pegue ali aquela Playboy de Gal Costa que eu vou lhe mostrar se ele não me roubou.
– Só se for agora, porque aí eu aproveito o advogado e o divórcio é na hora. Michele definitivamente não se interessa por disputas autorais.
– Pois pegue e veja aí na entrevista, ele mesmo conta. Foi no dia do chá.
Revoltado, transtornado e visivelmente contestado em minha própria casa, diante da televisão que impávida transmitia para os lares do Brasil a apropriação da minha composição, eu é quem fui atrás da entrevista em que o larápio narra o dia em que tomou o chá do Daime no Rio de Janeiro e me recebeu em Londres em 68 para ouvir, decorar e tantos anos depois gravar como se sua fosse a minha canção.
- Aqui ó: “Vi pessoas, não importava o tempo. Dedé estava se vendo em outro lugar. Fechei os olhos e as pessoas que eu via eram mais reais que o tapete de náilon. Gil falava em morrer e Sandra entrava e saia com olhos de índia. Indianos faziam uma suruba. Eu estava louco”. A vitória. – Viu? Roubou sim. Roubou, roubou, roubou.
– Que ele é chegado eu nunca duvidei, disse Michele, a incrédula - Agora aonde é que entra uma música que você fez é que eu não vejo aí, nem pra Kakay ouvir isso
– Na moral véi, protestei. – Pegue o carro aí e vá pra Santo Amaro mandar os malditos embora que você está se perdendo aqui. É óbvio, você quer que ele fique desmoralizado no Procure Saber? Vai dizer pra Jô Soares que me encontrou na conexão desse chá? Agora ir lá e gravar a música é que ele soube bem. Eu vou lhe mostrar agora, você vai ver e vai me pedir é desculpas pela sua falta de fé. – Aqui ó, disse eu, rabiscando o que eu me lembrava tão bem de ter transmitido ao infiel e passando o papel para minha adversária interlocutora, enfim podendo desabafar a minha vitória:
Uma menina negra
Em seu vestido amarelo
Lá o mar, as ondas
Como anda
E eu olhando
A melhor coisa do mundo
Era esse vestido
Na minha vida
Querida
– Tomou agora? E aí agora? Eu não quero nem dinheiro, ele vai ter é que se desculpar em rede nacional, na-ci-o-na-ú. Quero ver ele Black block aí falando de Daime, ou não, peguei, ou não, veio assim, ou não, gravei, ou não, como é Gil, me desclassifique.
– Mas você escreveu isso aí agora, e ele está cantando Uma menina preta de biquíni amarelo, na frente da onda, que bunda, que bunda .Você mesmo já tinha me falado dessa música horrível. E faz uns anos.
– Pois é, é o que eu estou lhe dizendo. Olhe a cara desse rapaz, veja se isso tem condições de ter escrito bunda de biquíni amerelo? Minha versão é muito melhor, e eu não falei bunda pra não lhe envergonhar. Ladrão descarado. A vida é assim, a pessoa não está em paz nem em pensamento, porque pode vir um doido aí viajando no espaço-tempo e roubar sua ideia no ar.
– Que dia essa greve acaba mesmo? Perguntou Michele, sempre com a última palavra.

*Essa é uma obra de ficção. Todos os personagens e fatos narrados são de livre criação do autor, não retratando pessoas nem acontecimentos reais. Procure saber.

Um comentário:

  1. Se todos são ficção também quero... Ficcionalizar-me!
    Mas, se Michele sabe disso, sei não... Ops, é ficção!

    Texto massa!!! Adoro suas críticas... Massa!!! (Para não perder minha baianidade!)

    Beijinhos


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